sábado, 22 de maio de 2010

Ficha Limpa: o porquê da minha rejeição

Esta semana o Senado aprovou o projeto de iniciativa popular conhecido como Ficha Limpa. Com mais de 1,6 milhão de assinaturas no papel e 2 milhões na internet, o texto vai à sanção presidencial nos próximos dias e pode passar a valer ainda nas eleições deste ano, dependendo da interpretação do Tribunal Superior Eleitoral.

Creio que todos na blogosfera saibam de cor e salteado o que é o Ficha Limpa: que foi uma iniciativa dos movimentos de combate à corrupção, que quem for condenado por um colegiado não pode se candidatar e etc.

Bom, os senadores aprovaram por unanimidade, em tempo recorde e discussão mínima, o Ficha Limpa (76 a 0). Claro, quem teria coragem de se opor ao “projeto que vai varrer a corrupção” numa votação aberta, ainda mais em ano eleitoral?

A repercussão, melhor impossível. O twitter bombou de comentários celebrando a aprovação do projeto. Foi a manchete da Folha de S. Paulo no dia seguinte. Os telejornais da TV Globo deram destaque à votação desde o Globo Notícia do dia da votação, passando pelo DFTV (!), Jornal Nacional e o Bom Dia Brasil do dia seguinte, quando o Alexandre comemorou a aprovação mesmo com as alterações do projeto original. Enfim, ficou a impressão de que a opinião pública gostou do projeto.

Acho que sou um dos poucos que não gostaram do Ficha Limpa.

Não se trata de uma posição ideológica ou pirracenta. Todos têm opiniões. Não digo que fui massacrado no twitter quando disse que sou contra o Ficha Limpa, porque tenho pouco mais de cem seguidores. Mas muitos dos meus amigos não entendem a minha posição. Disse-lhes que o buraco é mais embaixo, que não dava para explicar em 140 caracteres.

O meu ponto de discórdia com o Ficha Limpa está no próprio conceito do projeto: quem for condenado está impedido de se candidatar.

O texto original previa que quem tivesse qualquer condenação estaria impedido de se candidatar. OK. Temos vários tipos no meio político: parlamentares que se elegem comprando votos, que abusam do poder econômico dos seus cargos, que enviam dinheiro ilegalmente ao exterior, que não conseguem justificar seus gastos e caem na Lei de Responsabilidade Fiscal. Isso sem contar crimes piores, como torturas e homicídios (quem se lembra do Hildebrando Pascoal e do Carlos Xavier?).

Mas quem garante que toda condenação, ainda mais vinda de apenas um magistrado, é correta? E o uso político que isso poderia gerar? Um candidato com potencial de vencer uma eleição poderia, como já acontece em vários lugares, virar alvo de perseguição do Ministério Público ou de um juiz sem motivos justificáveis. E o pior: arcar com uma condenação em primeira instância, que já seria suficiente para se tornar inelegível, às vésperas da votação.

Quem conhece a Justiça brasileira, principalmente longe dos grandes centros, sabe do que estou falando. A promiscuidade entre o judiciário, entidades de classe e grupos políticos existe desde o tempo dos coronéis do poder.

Por várias vezes critiquei a Câmara dos Deputados por tomar decisões baseadas apenas no clamor da opinião pública ou pior, sem a devida discussão. Um bom exemplo é o projeto da Lei Seca, que foi aprovado num daqueles “mutirões” de véspera de recesso, em junho de 2008, num pacotão onde os parlamentares votaram embasados apenas na recomendação de seus lideres.

Mas, desta vez, a Câmara acertou. Ao alterar o projeto, colocando que a condenação para perda de elegibilidade deve se dar por um colegiado, e não por apenas um magistrado, diminuiu-se o poder do uso político do Ficha Limpa para a cassação de candidaturas. Diminuiu, não exterminou.

Quem garante que mesmos condenações de colegiados são sempre justas? Não precisamos pensar muito para lembrar de erros grosseiros. Olha aí o primeiro julgamento da Dorothy, que absolveu seus assassinos.

Não estou defendendo bandidos ou usurpadores de dinheiro público. Mas será que todo crime é do mal? A justiça nunca falha? Onde está o princípio da defesa? A corrupção é terrível, mas ela justifica a limitação do direito de qualquer cidadão brasileiro exercer a sua condição de ser candidato?

Antério Mânica foi eleito e reeleito prefeito de Unaí, mesmo com a pressão da “opinião pública” (leia-se imprensa) contra a sua candidatura. “Ah, é um assassino, mandou matar os fiscais do Ministério do Trabalho”. Suas vitórias foram fáceis e Antério é um líder da sua cidade. À época da eleição, ficou sub-entendido que a população de Unaí não sabia votar. E nada foi provado contra ele, até agora. O voto absolveu o candidato.

O Ficha Limpa só foi aprovado por pressão da opinião pública. Pressão dos editores dos jornais, que todos os dias inflamam as páginas dos pasquins com notícias desabonadoras da classe política –não que eles não mereçam, mas a reação é exagerada. De cinco anos para cá, desde a crise do “mensalão”, o esporte preferido da imprensa é malhar o Congresso. A prova está aí, com programas de humor batendo ponto no Salão Verde toda semana.


Corrupção, sempre houve. E, no meu lamentável entender, sempre haverá, mesmo que em menor escala. Enquanto persistir o jeitinho brasileiro e o atual modelo político, assim será. Mas, porque só agora esta reação? Só agora o brasileiro disse “cansei”?

Algo precisa ser feito, com certeza. O Ficha Limpa, no fundo, tem um bom propósito. Mas o texto é demasiado radical, mesmo na versão abrandada pela Câmara. Que tal diminuir a corrupção aumentando a fiscalização tributária?

Por que a OAB se apressa em pedir urgência da aprovação do Ficha Limpa e condena veementemente o projeto que dá poder de investigador aos fiscais da receita?

Quem não deve, não teme.

Se a sonegação fosse menor, a carga tributária seria menor, o desvio de recursos públicos menor. Logo, a corrupção também se reduziria. Mas a OAB fez de tudo para enterrar esta iniciativa, para mim muito melhor do que o Ficha Limpa. A simples ideia deste projeto arrepiou os cabelos da classe empresarial do país.

Enfim, voltando ao tema do post. Hoje, vivemos num país democrático. Mas, e se amanhã voltar o estado de exceção? E se ministros e desembargadores de tribunais forem cassados, como aconteceu em 1968 com o AI-5? O Ficha Limpa poderá ser uma justificativa legal para impedir que nomes de oposição cheguem ao poder.

A democracia no Brasil está bem consolidada, e assim deve permanecer por muitos anos. Mas, e se este Ficha Limpa existisse há 30 anos? Para ficar num exemplo: Lula, preso durante uma das greves do ABC, enfrentaria sérios problemas para escapar de uma condenação que impedisse a sua candidatura a governador de São Paulo em 1982.

Por fim, uma pergunta. E se o Ficha Limpa fosse mundial? Caso o padrão brasileiro de formador de opinião fosse exportado há uns 40 anos, Nelson Mandela e Xanana Gusmão nunca teriam a oportunidade de liderar a redemocratização de seus países.

Nenhum comentário:

Postar um comentário